Maria Egipcíaca,
chamada a Pecadora, passou 47 anos no deserto em austera penitência,
começada por volta do ano do Senhor de 270, no tempo do imperador
Cláudio.
Certa vez, um abade
chamado Zózimo atravessou o rio Jordão e percorria um grande
deserto procurando um santo eremita, quando viu caminhando uma pessoa
nua e de corpo enegrecido pelo sol. Era Maria Egipcíaca, que
imediatamente fugiu, com Zózimo correndo atrás dela, por isso
perguntou: “Abade Zózimo, porque me persegue? Desculpe-me, não
posso mostrar meu rosto porque sou mulher e estou nua; dê-me seu
manto para que eu possa olhá-lo sem me envergonhar”. Ouvindo ser
chamado pelo nome, ele ficou surpreso e depois de dar seu manto
prosternou-se a seus pés e pediu a ela que o abençoasse. Ela disse:
“É você, padre, que deve me abençoar, você que é ornado pela
dignidade sacerdotal”.
Ao perceber que ela
sabia seu nome e sua condição, ficou ainda mais impressionado e
insistiu para que o abençoasse. Mas ela disse: “Bendito seja Deus,
redentor de nossas almas”. Enquanto ela orava de mãos estendidas,
Zózimo viu que ela tinha se erguido a um côvado do chão. Vendo
aquilo, o ancião pôs-se a pensar se não era um espírito que
estava fingindo rezar. Então ela disse: “Que Deus o perdoe por ter
tomado uma mulher pecadora por um espírito imundo”. Zózimo
conjurou-a em nome do Senhor a lhe contar sua vida. Ela retorquiu:
“Perdoa-me, padre, mas se contar minha história você fugirá
apavorado, como se visse uma serpente. Seus ouvidos serão maculados
por minhas palavras e o ar contaminado por coisas sórdidas”. Mas
diante da veemente insistência, ela contou:
Nasci no Egito, irmão,
e aos doze anos de idade fui para Alexandria, onde durante dezessete
anos entreguei-me publicamente à libertinagem e nunca me recusei a
quem quer que fosse. Quando alguns homens da região embarcaram para
Jerusalém a fim de adorar a Santa Cruz, pedi aos marinheiros que me
levassem com eles. Como me pediram para pagar a passagem, respondi:
“Não tenho dinheiro, irmãos, mas posso entregar meu corpo como
pagamento.” Eles me levaram e usaram meu corpo.
Chegando a Jerusalém,
fui com as outras pessoas até a igreja para adorar a cruz, mas
imediatamente uma força invisível me repeliu e me impediu de
entrar. Várias vezes fui até a soleira da porta, e continuava a ser
repelida, enquanto todo mundo entrava sem dificuldade e sem encontrar
nenhum obstáculo. Pus-me a pensar e concluí que tudo aquilo tinha
como causa a enormidade de meus crimes.
Comecei a bater no peito com
as mãos, a derramar lágrimas amargas, a dar profundos suspiros do
fundo do coração e, ao erguer a cabeça, vi uma imagem da
bem-aventurada Vigem Maria. Pedi então, com lágrimas, que ela
obtivesse o perdão dos meus pecados e me deixasse entrar para adorar
a Santa Cruz, prometendo renunciar ao mundo e levar, dali em diante,
uma vida casta.
Após essa prece,
confiando na bem-aventurada Virgem, fui mais uma vez até a porta da
igreja, pela qual passei sem o menor obstáculo. Quando terminei de
adorar a Santa Cruz com grande devoção, alguém me deu três
moedas, com as quais comprei três pães, e ouvi uma voz que me
dizia: “Se atravessar o Jordão, estará salva.” Atravessei o
Jordão e vim para esse deserto, no qual fiquei 47 anos sem ter visto
homem algum. Os três pães que levei comigo, embora com o tempo
tenha se tornado duros como pedras, bastaram para me alimentar por 47
anos, mas minhas roupas há muito apodreceram.
Durante os primeiros
dezessete anos passados nesse deserto fui atormentada pelas tentações
da carne, mas hoje já as venci, com a graça de Deus. Agora que
contei toda minha história, peço que reze a Deus por mim.
O ancião ajoelhou-se e
abençoou a escrava do Senhor. Ela lhe disse: “Peço que no dia da
ceia do Senhor você venha para a margem do Jordão e traga o corpo
do Senhor. Eu irei encontrá-lo ali e receber de sua mão esse corpo
sagrado, porque desde o dia em que vim para cá não recebi a
comunhão do Senhor”. O ancião voltou para seu mosteiro e no ano
seguinte, ao se aproximar o dia da Ceia, pegou o corpo do Senhor e
foi até a margem do Jordão. Do outro lado estava de pé uma mulher
que fez o sinal-da-cruz sobre as águas e veio ao encontro dele. Ao
ver isso, tomado de surpresa, prosternou-se humildemente a seus pés.
Disse ela: “Não faça isso, pois você carrega os sacramentos do
Senhor e tem a dignidade sacerdotal. No entanto, padre, eu, suplico
que no próximo ano você se digne a me ver novamente no mesmo lugar
em que nos encontramos pela primeira vez”. Depois de fazer o
sinal-da-cruz, ela atravessou de volta as águas do Jordão para
ganhar a solidão do seu deserto.
Quanto ao ancião,
retornou a seu mosteiro e no ano seguinte foi ao lugar combinado, mas
encontrou Maria morta. Pôs-se a chorar e não ousou tocá-la, mas
disse consigo mesmo: “Eu sepultaria de bom grado o corpo desta
santa, mas temo que isso a desagrade”. Enquanto pensava assim, viu
as seguintes palavras gravadas na terra, perto da cabeça dela:
“Zózimo, enterre o corpo de Maria, devolva à terra sua poeira e
ore por mim ao Senhor, por ordem do qual deixei este mundo no segundo
dia de abril”.
Meditando sobre o fato, o ancião concluiu que ela
terminara sua vida no deserto, no ano anterior, logo após ter
recebido o sacramento do Senhor. Ora, antes de ir para junto de Deus,
Maria tinha ido em uma hora do Jordão ao deserto, distância que
Zózimo com muita dificuldade levava trinta dias para percorrer.
Vendo um leão que
mansamente vinha em sua direção, o ancião disse-lhe: “Esta santa
mulher mandou sepultar aqui seu corpo, mas não posso cavar a terra
porque sou velho e não tenho ferramentas. Cave você a terra para
que possamos sepultar seu santíssimo corpo”. O leão começou a
cavar e a fazer uma cova adequada, depois do que foi embora manso
como um cordeiro, enquanto o ancião voltava para o seu mosteiro
glorificando a Deus.
Nenhum comentário:
Postar um comentário