Certa vez Carlos chegou em meu escritório com um envelope na
mão. Sua perturbação era notória. O envelope era nada mais, nada menos do que
um teste de sorologia feito recente, ainda não aberto por falta de coragem;
ficando para mim a missão de abrir e dar o resultado.
Por não se tratar de uma tarefa agradável e devido o estado
de Carlos, optei por deixar o envelope de canto por algum tempo. Lhe ofereci um
café enquanto se iniciava uma conversa despretensiosa.
Inicialmente questionei se havia fatos concretos que o
levava a esperar o pior. A resposta foi positiva, baseada em encontros com um
jovem rapaz que conhecera na internet.
Como defensor pró vida, sou contra toda forma de contraceptivos,
mas se tratando de uma relação essencialmente infecunda e com altos riscos de
contaminação, considero razoável o uso de preservativos para quem opta pelo estilo
de vida homossexual. Ao questionar sobre isso fui informado que o motivo pelo
qual rejeitara o uso de preservativo é sua condenação conforme Doutrina Social
da Igreja. De fato, o é! Mas não estão os envolvidos em uma relação infecunda
com o mesmo sexo em uma condenação ainda maior?
Algumas xícaras de
café depois e com o envelope ainda nos aguardando, fomos nos aprofundando em
algumas questões até chegar ao ponto crucial: “Qual seria o sentido do vírus HIV?
”. Certamente que ele não queria uma resposta clínica, até porque sou incapaz
de o fazer. Se tratava de uma pergunta filosófica. Mesmo entre os que possuem
relação de alto risco, nem todos contraem o vírus, e entre os que contraem, há
algo benéfico que se possa obter disso?
No aspecto físico, a medicina muito avançou, garantido ao
soropositivo uma qualidade de vida semelhante, e em alguns casos, até mesmo
superior a quem não possui tal condição. A rotina de medicamentos, exercícios,
suplementos, visitas regulares ao médico e cuidados extras tem garantido a
muitos uma longevidade maior do que há muitos sedentários.
Percebemos então que o clima que estava no ar não se tratava
apenas de uma preocupação com qualidade de vida, visto que ela era real e
atingível, mas dor latente ali, manifesta em desespero, me parecia a da alma.
Seria muita pretensão discorrer sobre o sentido do vírus da
HIV e de doenças como um todo, mas algo estava bastante evidente no momento: “o
sexo que deveria, em suma, gerar vida estava gerando morte”. Estávamos diante de um fruto de perversão.
Tanto no sentido de perverter a finalidade do sexo, mas também de relações
humanas. Nem o sexo, nem relações
humanas foram feitas para gerar morte, muito pelo contrário, são para o oposto.
“O que era para gerar vida, hoje gera morte”... Repetimos
essa frase algumas vezes, ambos com o ar de surpresos, parecia que estávamos
diante de uma grande descoberta. Mas não, estávamos apenas diante da
constatação que, talvez, essa fosse uma das facetas a ser tirada do vírus; a
lembrança da morte.
Viemos do pó e ao pó retornaremos, entramos sem bens, sem
bens sairemos. Isso é o que nos ensina não só as Sagradas Escrituras, mas
grandes santos, mestres e filósofos.
Talvez esse não seja o sentido do vírus, talvez. Mas de
certo modo é uma grande lição benéfica que se pode tirar a cada manhã. É mais
sábio analisar a própria vida sob a ótica da morte do que a dos prazeres,
encontrando assim o real significado para nossa curta passagem na terra
enquanto nos preparamos para a vida eterna.
De alguma forma, a conversa foi satisfatória a ambos.
Obviamente que o Carlos ainda teria que lidar com o arrependimento do ato
praticado, independente do resultado. Cabe a ele também o firme propósito de
uma vida melhor. E fica a lição de ter a lembrança da morte para ajustar sua
breve vida aos grandes propósitos.
Lhe entreguei, então, o envelope e sugeri que após essa reflexão
ele mesmo enfrentasse o resultado de frente. Após outra xícara de café o
envelope foi aberto. O silêncio ganhou espaço enquanto ele olhava o resultado
por alguns segundos. Ele não me dissera o resultado, mas o percebi em sua face.
Preferi lhe dar um abraço, era o que eu tinha de melhor naquele momento. Decidi
que não seria eu a afastar o abraço ou romper o silêncio. Senti meu ombro
direito molhado por lágrimas, então o silêncio foi quebrado com a seguinte
frase: “Como contarei a minha esposa? ”
Depois entendi que Carlos aceitou bem seu destino e
carregava hoje no corpo a marca da lembrança que a vida é curta e deve ser
vivida para grandes propósitos. E o que mais lhe pesa é a lembrança de trazer a
mesma marca para dentro do seu matrimonio.
Minha intenção em relatar esse caso não é fazer associação
entre estilo de vida e doenças, sei que o tema é muito mais amplo do que o
exposto aqui, muito menos fazer apologia ou defesa da condição do vírus HIV.
Porém, mesmo sem ter que carregar o fardo que o Carlos e tantos outros carregam,
optei por fazer uma reflexão sobre a brevidade da vida diante da eternidade e
em como escolhas e ações afetam a vida do indivíduo e dos que estão ao redor. Longe
de mim neutralizar o sofrimento de quem carrega em seu corpo uma doença
incurável, transmissível e comprometedora com o estado clínico. Sei que de fato
há um sofrimento real, mas que isso seja convertido na benfeitoria de alerta
para a brevidade da vida e com isso o ensinamento de uma vida que dê valor ao
que realmente importa.
João Css.
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