quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Um papo sobre HIV


Certa vez Carlos chegou em meu escritório com um envelope na mão. Sua perturbação era notória. O envelope era nada mais, nada menos do que um teste de sorologia feito recente, ainda não aberto por falta de coragem; ficando para mim a missão de abrir e dar o resultado.

Por não se tratar de uma tarefa agradável e devido o estado de Carlos, optei por deixar o envelope de canto por algum tempo. Lhe ofereci um café enquanto se iniciava uma conversa despretensiosa.

Inicialmente questionei se havia fatos concretos que o levava a esperar o pior. A resposta foi positiva, baseada em encontros com um jovem rapaz que conhecera na internet.

Como defensor pró vida, sou contra toda forma de contraceptivos, mas se tratando de uma relação essencialmente infecunda e com altos riscos de contaminação, considero razoável o uso de preservativos para quem opta pelo estilo de vida homossexual. Ao questionar sobre isso fui informado que o motivo pelo qual rejeitara o uso de preservativo é sua condenação conforme Doutrina Social da Igreja. De fato, o é! Mas não estão os envolvidos em uma relação infecunda com o mesmo sexo em uma condenação ainda maior?

Algumas xícaras de café depois e com o envelope ainda nos aguardando, fomos nos aprofundando em algumas questões até chegar ao ponto crucial: “Qual seria o sentido do vírus HIV? ”. Certamente que ele não queria uma resposta clínica, até porque sou incapaz de o fazer. Se tratava de uma pergunta filosófica. Mesmo entre os que possuem relação de alto risco, nem todos contraem o vírus, e entre os que contraem, há algo benéfico que se possa obter disso?

No aspecto físico, a medicina muito avançou, garantido ao soropositivo uma qualidade de vida semelhante, e em alguns casos, até mesmo superior a quem não possui tal condição. A rotina de medicamentos, exercícios, suplementos, visitas regulares ao médico e cuidados extras tem garantido a muitos uma longevidade maior do que há muitos sedentários.

Percebemos então que o clima que estava no ar não se tratava apenas de uma preocupação com qualidade de vida, visto que ela era real e atingível, mas dor latente ali, manifesta em desespero, me parecia a da alma.

Seria muita pretensão discorrer sobre o sentido do vírus da HIV e de doenças como um todo, mas algo estava bastante evidente no momento: “o sexo que deveria, em suma, gerar vida estava gerando morte”.  Estávamos diante de um fruto de perversão. Tanto no sentido de perverter a finalidade do sexo, mas também de relações humanas.  Nem o sexo, nem relações humanas foram feitas para gerar morte, muito pelo contrário, são para o oposto.

“O que era para gerar vida, hoje gera morte”... Repetimos essa frase algumas vezes, ambos com o ar de surpresos, parecia que estávamos diante de uma grande descoberta. Mas não, estávamos apenas diante da constatação que, talvez, essa fosse uma das facetas a ser tirada do vírus; a lembrança da morte.

Viemos do pó e ao pó retornaremos, entramos sem bens, sem bens sairemos. Isso é o que nos ensina não só as Sagradas Escrituras, mas grandes santos, mestres e filósofos.
Talvez esse não seja o sentido do vírus, talvez. Mas de certo modo é uma grande lição benéfica que se pode tirar a cada manhã. É mais sábio analisar a própria vida sob a ótica da morte do que a dos prazeres, encontrando assim o real significado para nossa curta passagem na terra enquanto nos preparamos para a vida eterna.

De alguma forma, a conversa foi satisfatória a ambos. Obviamente que o Carlos ainda teria que lidar com o arrependimento do ato praticado, independente do resultado. Cabe a ele também o firme propósito de uma vida melhor. E fica a lição de ter a lembrança da morte para ajustar sua breve vida aos grandes propósitos.

Lhe entreguei, então, o envelope e sugeri que após essa reflexão ele mesmo enfrentasse o resultado de frente. Após outra xícara de café o envelope foi aberto. O silêncio ganhou espaço enquanto ele olhava o resultado por alguns segundos. Ele não me dissera o resultado, mas o percebi em sua face. Preferi lhe dar um abraço, era o que eu tinha de melhor naquele momento. Decidi que não seria eu a afastar o abraço ou romper o silêncio. Senti meu ombro direito molhado por lágrimas, então o silêncio foi quebrado com a seguinte frase: “Como contarei a minha esposa? ”

Depois entendi que Carlos aceitou bem seu destino e carregava hoje no corpo a marca da lembrança que a vida é curta e deve ser vivida para grandes propósitos. E o que mais lhe pesa é a lembrança de trazer a mesma marca para dentro do seu matrimonio.

Minha intenção em relatar esse caso não é fazer associação entre estilo de vida e doenças, sei que o tema é muito mais amplo do que o exposto aqui, muito menos fazer apologia ou defesa da condição do vírus HIV. Porém, mesmo sem ter que carregar o fardo que o Carlos e tantos outros carregam, optei por fazer uma reflexão sobre a brevidade da vida diante da eternidade e em como escolhas e ações afetam a vida do indivíduo e dos que estão ao redor. Longe de mim neutralizar o sofrimento de quem carrega em seu corpo uma doença incurável, transmissível e comprometedora com o estado clínico. Sei que de fato há um sofrimento real, mas que isso seja convertido na benfeitoria de alerta para a brevidade da vida e com isso o ensinamento de uma vida que dê valor ao que realmente importa.

João Css.


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